Um Elétrico Chamado Desejo: a inspiração de Tennessee Williams

Uma das histórias mais impactantes do escritor e dramaturgo Tennessee Williams, Um Elétrico Chamado Desejo nasceu como uma simples confidência literária, mas teve o condão de conduzir Marlon Brando ao estrelato e Vivien Leigh à loucura.
Eis o que sabemos sobre este clássico…
O desabafo de tennessee williams
“Vamos todos morrer juntos”, sugeriu, uma noite, Rose Williams ao irmão mais novo.
Foi a primeira vez que passou pela cabeça de Tom que pudesse haver algo de errado com a sua irmã. Decidiu, ainda assim, não dar demasiada importância ao comentário. Tratar-se-ia, pensava ele, de apenas mais uma das brincadeiras de Rose, que por vezes se encerrava de tal forma nas suas fantasias que se tornava complicado trazê-la de volta à realidade.
Apenas Tom a compreendia.
Os dois costumavam proteger-se mutuamente para escapar a um lar disfuncional, dominado por um pai violento, sem respeito pela família, e por uma mãe exageradamente pudica e reprimida, que aceitava os abusos do marido como naturais.
Eram outros tempos.
Seja como for, o refúgio pessoal de Tom era a escrita, área para a qual demonstrava uma sensibilidade invulgar. Quando terminou os estudos, já tinha escrito e publicado diversos textos, a maior parte dos quais inspirados na sua família e nas vivências pessoais. Tinha também recebido, por parte dos colegas, a alcunha de “Tennessee”, graças ao acentuado sotaque sulista.
O apelido soou-lhe tão bem que, em 1939, acabou por o adicionar ao seu nome, passando oficialmente a chamar-se Tennessee Williams.
Entretanto, Rose desesperava.

Abrigara-se, desde muito jovem, na convicção de que, um dia, um qualquer príncipe encantado a encontraria e resgataria da infeliz casa dos pais. Contudo, os anos passavam e o companheiro que tanto desejava tardava em aparecer.
Cada vez mais ansiosa com a possibilidade de nunca encontrar ninguém, tornou-se quase histérica na companhia de homens. Pior: sofria com insónias, alucinações intensas e experienciava até, por vezes, devaneios sexuais.
A mãe levou-a ao médico e, aos 28 anos, foi diagnosticada como esquizofrénica. Acabou internada num asilo quando, depois de presenciar mais um episódio de violência doméstica, acusou o pai de a ter violado.
A mãe, mais assustada com a sexualidade explícita das palavras da filha do que com a raiva habitual do marido, exigiu aos médicos que lhe apresentassem uma solução, por muito extrema que pudesse ser, para a calar e acabar com as mentiras.
Nesse mesmo ano, Rose foi submetida a uma das primeiras lobotomias frontais executadas em solo americano. A intervenção tornou-a permanentemente inválida.
Tennessee Williams só descobriu o que tinha acontecido quando o estrago já estava feito. A autorização para a cirurgia fora dada quando ele se encontrava na universidade. Nunca perdoou os seus pais pela decisão.
Sentindo que falhara no apoio à irmã, mergulhou num grave estado de depressão e, como sempre, procurou desabafar através da escrita.
Resultou daqui, em 1947, o guião para a peça Um Elétrico Chamado Desejo, inspirado na sua família e, em especial, na sua irmã Rose.
A ascensão de marlon brando
Um Elétrico Chamado Desejo conta a história de Blanche DuBois, uma mulher neurótica e com ilusões de grandeza, que vai morar por uns tempos com a irmã, Stella, e o seu irascível marido, Stanley Kowalski, com o objetivo de recuperar de um esgotamento nervoso e colocar a vida em ordem.
Acontece que Stanley acredita que a presença de Blanche é uma ameaça ao seu domínio no meio doméstico e faz tudo o que pode para se ver livre dela, menosprezando-a, maltratando-a e tentando impedir a sua felicidade.
Blanche, tal como Rose, está sozinha com alguém que a vê como um estorvo.
A peça estreou na Broadway a 3 de dezembro de 1947, encenada por Elia Kazan. Logo no final da primeira noite, o público agraciou-a com uma ovação de 30 minutos.
Se o êxito da história era claro, a peça também revelava o enorme talento de um jovem ator, até então desconhecido do grande público: Marlon Brando.
Com apenas 23 anos, Brando interpretava o papel de Stanley Kowalski, supostamente o “vilão” da narrativa, mas o seu magnetismo em palco era tanto que a afinidade do público se movia de Blanche para ele.
Elia Kazan chegou a pedir a Tennessee Williams que alterasse o guião por forma a afastar qualquer possibilidade de o público se identificar com este personagem. No entanto, o escritor recusou, já que ele próprio ficara deslumbrado com a magnífica interpretação de Marlon Brando.

Três anos e 855 exibições depois, foi decidido que Um Elétrico Chamado Desejo seria adaptado ao cinema. A ideia era juntar todo o elenco original para a nova versão, mas cedo Kazan percebeu um problema: nenhum dos atores tinha nome suficiente para vender o filme junto ao grande público.
Com Marlon Brando intocável no seu papel, decidiu encontrar uma nova protagonista que substituísse Jessica Tandy no papel de Blanche. E, quando as negociações com a atriz Olivia de Havilland falharam, o próprio Brando resolveu intervir.
O jovem ator sugeriu o recrutamento de Vivien Leigh, que há mais de uma dezena de anos encarnara (na perfeição) Scarlett O’Hara no filme E Tudo o Vento Levou.
De acordo com Brando, Vivien era perfeita não apenas por já conhecer o papel da adaptação britânica da peça, mas porque, na vida real, ela era Blanche DuBois — em especial depois de sofrer dois abortos e ser diagnosticada como maníaco-depressiva.
Os produtores concordaram e, em 1951, o filme estreou.
O resultado? Um dos maiores clássicos do cinema, vencedor de quatro Óscares e nomeado para mais oito.
Quanto a Marlon Brando, apesar de não ter sido distinguido com nenhum, a sua interpretação é, ainda hoje, amplamente apontada como uma das melhores de sempre no grande ecrã. Estava lançada uma carreira que viria a revelar-se estelar.
A queda de vivien leigh
“Interpretar Blanche DuBois empurrou-me para a loucura”, confessou, anos mais tarde, Vivien Leigh.
É certo que as coisas já não estavam bem mesmo antes de ser escolhida pelo marido, Laurence Olivier, para integrar a adaptação londrina da peça, encenada por ele, mas terá sido esse o momento que marcou o início do seu desmoronamento.
Vivien Leigh, num estado inicial da sua desordem bipolar, identificou-se de tal forma com a alienação de Blanche DuBois que se empenhou a encarná-la com a maior das seriedades numa sucessão de 326 imaculadas exibições em Inglaterra.
Sem tempo para repousar, partiu de seguida para os Estados Unidos. Tinha sido escolhida para interpretar Blanche também na versão cinematográfica da peça.
Por lá, deparou-se com um elenco bastante unido, onde se sentia a mais, e com um realizador que, embora lhe reconhecesse a entrega, não gostava particularmente dela como atriz.
Ou pelo menos era o que ela achava.
Na verdade, Elia Kazan considerava-a uma autêntica “máquina”, intrigando-se constantemente com os limites da devoção de Vivien ao papel.
Numa ocasião, mandou-a repetir dezenas de vezes uma cena com Kim Hunter, que interpretava o papel de Stella. Quando esta lhe perguntou se havia algo de errado com o modo como estavam a representar, Kazan confessou que estava tudo perfeito e que ele apenas queria perceber quantas vezes Vivien Leigh conseguiria soltar uma lágrima no momento exato em que proferia uma determinada sílaba.

O automatismo obsessivo de Vivien Leigh acabou por valer-lhe um Óscar, mas também a mergulhou na bipolaridade. E de um modo tão profundo que passou a confundir a sua própria vida com a de Blanche DuBois.
Começou a sofrer de insónias, depressão, quebras de memória e mudanças súbitas de humor. Traiu várias vezes o marido — Marlon Brando chegou a afirmar que só não dormiu com ela por respeito ao seu amigo Laurence Olivier — e confessava-o com uma naturalidade imprópria, acrescentando sempre que já não o amava, quando a verdade era que dependia totalmente dele.
Embora estivesse familiarizado com os problemas de saúde da esposa, Olivier acabou por fartar-se dos muitos abusos físicos e verbais e pediu o divórcio.
Vivien Leigh, mais deprimida do que nunca, nunca recuperou por completo da separação. Acabou, como Blanche DuBois, dependente da “gentileza de estranhos”.

Um elétrico chamado desejo
Tennessee Williams
Esta edição da Relógio d’Água inclui, além de Um Elétrico Chamado Desejo, as peças Gata em Telhado de Zinco Quente, Subitamente no Verão Passado e Verão e Fumo.