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A Morte de Ivan Ilitch: a epifania de Tolstoi

Originalmente publicada em 1886, A Morte de Ivan Ilitch, a novela em que Lev Tolstoi explora os seus próprios medos e considerações sobre a morte, é hoje um dos grandes clássicos da literatura mundial. Mas terá também refletido uma transformação muito particular na filosofia pessoal do escritor russo.

Em busca da verdade

A morte começa a apoquentar Tolstoi quando este tem pouco mais de 50 anos. É um assunto que o leva a reconsiderar tanto a proximidade à religião como os padrões sociais e morais da sua época. Também acaba, naturalmente, por refletir-se nos textos que escreve, sejam estes ensaios filosóficos ou trabalhos de ficção.

A epifania espiritual ilumina-o ao ponto de rejeitar os seus dois mais célebres romances, Anna Karenina e Guerra e Paz, em detrimento de textos que, no seu entender, “melhor refletem a verdade”.

É neste contexto que, em 1886, o escritor russo publica uma das suas obras-primas, uma pequena novela sobre a morte chamada A Morte de Ivan Ilitch.

Qual é a história?

O protagonista da novela dá pelo nome de Ivan Ilitch e é um juiz de meia-idade, membro do Tribunal de Justiça de São Petersburgo.

Confirmando o enunciado no título, Ivan é dado como morto logo à primeira página. As restantes servem para perceber quem era, quem o rodeava, como eram banais as suas rotinas e o que o acabou por matar.

No entanto, o mais interessante é mesmo acompanhar as reflexões sobre a vida e a morte por parte de um homem que não compreende por que tem de sofrer e que, a certa altura, dá por si a desejar ter tido uma vida bem diferente. 

No prefácio escrito para uma das edições do livro, o português António Lobo Antunes reflete sobre as diferentes interpretações que a história pode ter em quem a lê:

Este livro tão breve, uma das maiores obras-primas do espírito humano, tem sido, desde a sua publicação, um motivo de controvérsia para a crítica: trata-se de uma obra sobre a morte ou de uma obra que nega a morte?

Lukacs, por exemplo, defendia a segunda hipótese, contrapondo o Llanto por Ignacio Sanchez Mejias, de Federico Garcia Lorca, como o grande texto acerca do fim.

Embora eu concorde com parte dos argumentos de uns e outros, é um tipo de discussão que só academicamente me interessa: a morte de Ivan Ilitch é ambas as coisas e transcende tudo isso para se tornar o retrato implacável da nossa condição: não há sentimento que nele não figure, não há emoção que não esteja presente. Tudo o que somos se acha em poucas páginas, escrito de uma forma magistral.

Vladimir Nabokov, por sua vez, considera que “esta não é a história da morte de Ivan, mas da vida de Ivan”, pois defende que, para Tolstoi, a morte física é apenas uma parte da mortalidade, porventura menos importante do que a morte espiritual:

A fórmula de Tolstoi é: Ivan viveu uma vida má e, como uma vida má não é mais do que a morte da alma, então Ivan viveu uma morte viva.

Um final inesperado

Embora as realidades de ambos sejam distintas, há qualquer coisa de Tolstoi em Ivan Ilitch. O autor vive, nos seus últimos anos, uma existência sufocada pelo próprio sucesso, surgindo aos olhos de muitos “devotos” mais como profeta que como escritor.

A sua mulher, por sua vez, reage mal ao aparato, reclamando atenção e fazendo da discussão uma rotina. O ambiente doméstico torna-se, aos poucos, insuportável.

Eis que, na madrugada de 28 de outubro de 1910, pressentindo o fim, Lev Tolstoi foge de casa, deixando uma carta à mulher a justificar a decisão:

A minha partida vai causar-te sofrimento. Peço desculpa por isso, mas compreende e acredita que eu não podia agir de forma diferente. A minha posição nesta casa está a tornar-se – já se tornou – intolerável. Além do mais, não consigo continuar a viver no luxo em que tenho vivido.

Faço o que os homens da minha idade geralmente fazem: abandono a vida mundana para passar os meus últimos dias em solidão e silêncio. Por favor compreende e não venhas atrás de mim se descobrires onde estou. A tua chegada apenas tornará pior a nossa situação, mas não alterará a minha decisão.

Agradeço-te os 48 honrados anos passados comigo e peço que me perdoes tudo pelo qual posso ser culpado perante ti, assim como te perdoo, com toda a minha alma, qualquer culpa que possas ter para comigo.

Aconselho-te a aceitares as novas circunstâncias nas quais a minha partida te deixará e a não teres sentimentos pouco amáveis para comigo.

Tolstoi é encontrado dias depois, bastante debilitado devido a uma pneumonia, na estação de comboios de Astapovo. Acaba por morrer no dia 7 de novembro.

A breve fuga permite-lhe, porém, os últimos momentos de felicidade: a liberdade da aventura, as alegres conversas com estranhos, a contemplação de belas paisagens através da plataforma traseira do comboio.

Despede-se, afinal, da vida como Ivan Ilitch mais teria querido: experimentando-a sem amarras.

A Morte de Ivan Ilitch

Lev Tolstoi

A edição de bolso deste clássico de Tolstoi, publicada pela BIS, chancela do Grupo LeYa, conta com um breve prefácio escrito por António Lobo Antunes.

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