Noites Brancas: os perigosos sonhadores de Dostoiévski

As célebres noites brancas de São Petersburgo são o ponto de partida para um clássico no qual Fiódor Dostoiévski reflete sobre a solidão, o amor e a melhor forma de lidar com expectativas defraudadas.
Um tributo aos sonhadores?
Por baixo da expressão sisuda e do demarcado existencialismo, Fiódor Dostoiévski era um sonhador. E um romântico. Que outro tipo de homem abriria mão da segurança de uma potencialmente ilustre carreira militar em favor da incerteza de se afirmar como escritor na sociedade russa do século XIX?
Sem uma verdadeira rede de segurança ou dinheiro suficiente para se sustentar, Dostoiévski viu-se obrigado a aceitar um emprego como redator numa publicação de São Petersburgo. Entretinha-se, nos tempos livres, a escrever ficção, dando através dela liberdade aos pensamentos reprimidos.
É assim que, em 1848, ainda bem no início da sua longa e admirável carreira literária, nasce a novela Noites Brancas, uma história simples e delicada que reflete sobre a necessidade de não deixarmos morrer os sonhos nas nossas vidas.
Ou será que não é bem assim?
A história de Noites Brancas
Em Noites Brancas, Fiódor Dostoiévski dá voz a um narrador anónimo que ganhou o hábito de se refugiar nas fantasias para combater a profunda solidão que sente. Afirma-se, por isso, um “sonhador”. Imaginativo, idealista, mas não interveniente.
Só que, ao deambular uma noite pelas ruas de São Petersburgo, este sonhador acaba por ver-se forçado a sair da carapaça. Isto porque um incidente casual o leva ao encontro de Nástenka, uma jovem que aguarda ansiosamente a chegada do homem pelo qual está apaixonada e com o qual prometeu casar um ano antes.

Nástenka vence aos poucos a timidez do solitário narrador e, ao longo de quatro noites, os dois encontram-se para conversar, estabelecendo aos poucos uma relação de apoio mútuo. A certa altura, ele reflete sobre a sua particular condição:
Sou um sonhador; tenho tão pouca vida real que momentos como estes que presentemente vivo, por demais preciosos, não posso deixar de os repetir nos meus sonhos.
E ainda:
O sonhador, para o definir de uma forma mais precisa, não é uma pessoa, sabe?, mas uma espécie de criatura do género neutro. Refugia-se, de preferência, nalgum canto inacessível, como se fosse sua intenção ocultar-se até mesmo da luz do dia e, uma vez ali enfiado, deixa-se ficar na sua carapaça.
Acontece que, embora lhe garanta que a amizade entre ambos não é mais do que platónica, cedo o sonhador se apercebe que se perdeu de amores por ela. E que a relação entre ambos terá forçosamente de mudar.
Uma crítica aos sonhadores?
Noites Brancas não foi um sucesso. Não marcou um ponto de viragem na carreira de Dostoiévski nem lhe deu desafogo financeiro ou reconhecimento no meio literário. Não obstante, é hoje tido como um dos seus trabalhos mais inspiradores.
São muitos os leitores que afirmam apreciar o aparente romantismo que o russo demonstra nesta história, pelo menos quando em oposição com o “cruel” existencialismo que acabará por caracterizar a maior parte da sua obra.
Mas talvez a novela tenha mais que se lhe diga, como refere o autor Dale E. Peterson no ensaio “Memoir of a Petersburg Pathology”:
Não é surpreendente que existam muitas interpretações contraditórias de Noites Brancas. É tipicamente considerada uma obra algo anómala, ao exibir uma versão mais amável, gentil, encantadora e sentimental quando comparada com os retratos socialmente conscientes que o jovem Dostoiévski fazia dos falhados e pobres de Gogol.
No entanto, outros leitores estarão mais sintonizados com a perspetiva crítica de Dostoiévski em relação à “мечтательность” e com a semelhança formal para com a obra Cadernos do Subterrâneo.
Por “мечтательность”, entenda-se o fenómeno de sonhar acordado ou, numa perspetiva um pouco mais ampla, a corrente do idealismo.

Dale E. Peterson nota que, numa coluna escrita em junho de 1847, apenas um ano antes de publicar Noites Brancas, Dostoiévski aponta que a proliferação de “sonhadores” é precisamente um dos grandes perigos da sociedade da época:
Haverá muitos entre nós que encontraram a sua verdadeira vocação? É assim que, aos poucos, surgem os sonhos em sujeitos ávidos por atividade, espontaneidade, autenticidade, mas que são fracos, femininos, delicados. Até que, por fim, um homem já não é reconhecível como homem, mas como uma entidade estranha de género neutro: um sonhador.
E sabem, senhores, o que é esse fenómeno chamado “sonhador”? É um pesadelo petersburguês. A personificação do pecado. Uma tragédia muda, misteriosa, sombria e selvagem. Dizemo-lo sem brincar.
É possível que a “romântica” novela de Fiódor Dostoiévski não seja, por isso, mais do que uma alfinetada ao crescente idealismo que o autor entendia ameaçar a concepção de realidade da sociedade russa.
A narrativa desenrola-se, contudo, de uma forma suficientemente vaga para satisfazer até mesmo os leitores que discordam desta ideia.
Ou nas palavras do sonhador:
Meu Deus! Um minuto inteiro de felicidade! Não será isso o bastante para preencher toda a vida de um homem?

Noites Brancas
Fiódor Dostoiévski
Este volume da Editorial Presença foi traduzido diretamente do russo por Nina Guerra e Filipe Guerra, a dupla responsável pela tradução da maioria dos clássicos do autor.