O Retrato de Dorian Gray: as cinquenta sombras de Oscar Wilde
Hoje considerado um dos maiores clássicos da literatura, O Retrato de Dorian Gray valeu, na altura em que foi publicado, muitos dissabores a Oscar Wilde.
Um retrato que espelha um leitor… e um escritor
Junho de 1890. O Retrato de Dorian Gray é publicado, pela primeira vez, numa edição da revista britânica Lippincott’s Monthly Magazine.
As reações não se fazem esperar. Os críticos especializados brindam-no com adjetivos como “vulgar”, “impuro”, “venenoso” e “nauseante”. Os leitores, por sua vez, apressam-se a condenar publicamente a sua “imoralidade”.
Forma-se uma discórdia de tal ordem que a revista ordena a retirada do número das bancas, isto apesar de já antes ter censurado cerca de 500 palavras do texto original para atenuar o “vocabulário cru” e os “conteúdos explícitos” da história.
Oscar Wilde, o autor, rebate todos estes comentários num prefácio escrito para a primeira edição em livro da narrativa: “A crítica, na sua mais elevada ou medíocre expressão, é uma forma de autobiografia. Aqueles que encontram significados feios nas coisas belas são corruptos sem encantarem, o que é uma falha. Aqueles que encontram significados belos nas coisas belas são cultos. Para esses, há esperança.”
E acrescenta: “Um livro moral ou imoral é coisa que não existe. Os livros são bem escritos ou mal escritos. É tudo.”
E ainda: “Toda a arte é, ao mesmo tempo, superfície e símbolo. Os que se aventuram sob a superfície fazem-no por sua conta e risco. Os que interpretam o símbolo fazem-no por sua conta e risco. É o espectador que a arte espelha realmente, e não a vida.”
Para bom entendedor, meia palavra basta. Mas se é verdade que O Retrato de Dorian Gray é um espelho de quem o lê, também será certamente um espelho de quem o escreve.
Oscar Wilde admite isso mesmo, chegando a referir que os três personagens principais não passam de reflexos dele próprio: “Basil Hallward é o que acho que sou; Lord Henry é o que o mundo acha de mim; e Dorian é o que eu gostaria de ser, talvez numa outra época.”

Beleza, arte e sexualidade
O protagonista do controverso romance é Dorian Gray, um jovem dotado de uma imensa beleza, que se vê apanhado entre a paixão de um pintor arrebatado, Basil Hallward, e o hedonismo de um aristocrata que o incentiva a viver sem limites, Lord Henry Wotton.
A influência deste último revela-se, porém, superior e Dorian Gray acaba por celebrar um acordo faustiano que faz com que um misterioso retrato envelheça por ele, permitindo-lhe assim manter inalterada, ao longo dos anos, a sua beleza e juventude.
“O impulso permanente de Dorian é esgotar as sensações que pode tirar de um determinado domínio, de uma determinada disciplina artística, sem limites éticos ou de outra natureza”, explica João R. Figueiredo, professor de Teoria da Literatura e de Cultura Visual na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, numa introdução escrita para o livro. “As impressões belas podem ser suscitadas pelo mais variado tipo de objetos, natural ou criado pelo Homem. O problema é que Dorian parece não saber distinguir o que é permitido à vida do conjunto mais restrito daquilo que só é permitido à arte.”
Não obstante, o que enfurece os leitores iniciais de O Retrato de Dorian Gray não são as filosofias hedonistas nem o simbólico acordo com o Diabo, mas sim as alusões a desejos homossexuais. Até porque Oscar Wilde é ele próprio homossexual, algo que a Inglaterra vitoriana não vê com boa cara.
“Só a leitores muito distraídos não será percetível que o romance e a estética de Wilde, com a ênfase no individualismo contra os impulsos normalizadores da sociedade, são uma clara apologia da sua homossexualidade”, escreve João R. Figueiredo. “A defesa do pecado e da imoralidade é um modo de justificar a fuga às convenções e às normas, um modo só tenuemente codificado de falar da sua própria orientação sexual.”
Com a publicação de O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde passa a ser fortemente conotado com o decadentismo das novas gerações. E quando, mais tarde, o autor é julgado (e condenado) por “sodomia” e “exposição indecente”, excertos do livro são lidos e apresentados como prova da sua leviandade.
Wilde é preso por dois anos e, depois de libertado, muda-se para França, onde permanece até morrer. A moral que um dia apresenta para o seu único romance adequa-se estranhamente bem à sua própria vida: “A moral é esta: todo o excesso, bem como toda a renúncia, traz o seu próprio castigo.”

O Retrato de Dorian Gray
Oscar Wilde
Esta edição do livro, incluída na coleção Penguin Clássicos, conta com a tradução de Catarina Ferreira de Almeida e com uma introdução escrita por João R. Figueiredo.
