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Quais são os livros mais importantes da literatura portuguesa?

Em 2016, por ocasião do Dia Mundial do Livro, o Diário de Notícias procurou identificar os 50 livros mais importantes da literatura portuguesa.

Para esse efeito, recorreu ao especialista literário Miguel Real, que elaborou uma lista inicial a partir das obras de 60 autores. Depois, recolheu as preferências de dez escritores/editores — António Mega Ferreira, Francisco Vale, Isabel Alçada, Isabel Pires de Lima, Manuel Alberto Valente, Maria Alzira Seixo, Nuno Júdice, Pedro Mexia, Viale Moutinho e Zeferino Coelho — em relação a essa lista.

Chegou, por fim, a uma listagem que ainda passou pela aprovação de outro especialista literário, Fernando Pinto de Amaral. Após um mês de trabalho, os livros escolhidos estavam separados do seguinte modo:

  • 25 livros dos mais diversos géneros
  • 10 ensaios
  • 10 livros de poesia
  • 5 peças de teatro

Tomo a liberdade de partilhar abaixo os 50 eleitos.

Os 50 livros mais importantes da literatura portuguesa (segundo o Diário de Notícias)

  • Cancioneiros Medievais: Cantigas de Amigo e de Amor
  • Crónica de D. João I (Fernão Lopes)
  • Menina e Moça (Bernardim Ribeiro)
  • Os Lusíadas (Luís de Camões)
  • Sermões (Padre António Vieira)
  • Peregrinação (Fernão Mendes Pinto)
  • Viagens na Minha Terra (Almeida Garrett)
  • A Brasileira de Prazins (Camilo Castelo Branco)
  • Sonetos (Antero de Quental)
  • Os Maias (Eça de Queiroz)
  • A Arte de Ser Português (Teixeira de Pascoaes)
  • Húmus (Raul Brandão)
  • Mau Tempo no Canal (Vitorino Nemésio)
  • Uma Abelha na Chuva (Carlos de Oliveira)
  • A Sibila (Agustina Bessa-Luís)
  • A Casa Grande de Romarigães (Aquilino Ribeiro)
  • Aparição (Vergílio Ferreira)
  • Livro Sexto (Sophia de Mello Breyner Andresen)
  • O Delfim (José Cardoso Pires)
  • Maina Mendes (Maria Velho da Costa)
  • Sinais de Fogo (Jorge de Sena)
  • Livro do Desassossego (Fernando Pessoa)
  • Memorial do Convento (José Saramago)
  • Sôbolos Rios que Vão (António Lobo Antunes)
  • Uma Viagem à Índia (Gonçalo M. Tavares)

Os ensaios mais importantes da literatura portuguesa

  • Leal Conselheiro (Rei D. Duarte)
  • Quod Nihil Scitur (Francisco Sanches)
  • O Verdadeiro Método de Estudar (Luís António Verney)
  • Portugal Contemporâneo (Oliveira Martins)
  • A Ideia de Deus (Sampaio Bruno)
  • Ensaios (António Sérgio)
  • Ir à Índia Sem Abandonar Portugal (Agostinho da Silva)
  • O Labirinto da Saudade (Eduardo Lourenço)
  • Tratado da Evidência (Fernando Gil)
  • O Erro de Descartes (António Damásio)

Os livros de poesia mais importantes da literatura portuguesa

  • Obra Poética (Sá de Miranda)
  • Poesia (Bocage)
  • O Livro (Cesário Verde)
  • (António Nobre)
  • Clepsidra (Camilo Pessanha)
  • Poemas de Deus e do Diabo (José Régio)
  • As Mãos e os Frutos (Eugénio de Andrade)
  • Pena Capital (Mário Cesariny)
  • A Colher na Boca (Herberto Helder)
  • Toda a Terra (Ruy Belo)

As peças de teatro mais importantes da literatura portuguesa

  • O Auto da Barca do Inferno (Gil Vicente)
  • A Castro (António Ferreira)
  • Auto do Fidalgo Aprendiz (Francisco Manuel de Melo)
  • Guerras de Alecrim e Manjerona (António José da Silva)
  • O Judeu (Bernardo Santareno)

É uma lista digna de respeito, composta por incontestáveis clássicos, é claro, mas, à medida que a percorria, não pude deixar de pensar: serão mesmo estes os melhores e mais importantes títulos da literatura portuguesa?

Será sequer possível fazer uma listagem objetiva com este propósito?

Breve análise à seleção do Diário de Notícias

O lote apresentado pelo Diário de Notícias inclui obras publicadas entre o século XIII e o século XXI, o que, à primeira vista, parece uma ótima amplitude temporal. No entanto, quando percebemos como se encontram distribuídas, encontramos grandes discrepâncias:

DATA ORIGINAL DE PUBLICAÇÃOQUANTIDADE DE LIVROS ESCOLHIDOS
Século XIII2%
Século XIV0%
Século XV4%
Século XVI12%
Século XVII6%
Século XVIII6%
Século XIX14%
Século XX52%
Século XXI4%

Daqui retiramos que 66% dos livros referidos pertencem ao século XIX ou ao século XX. Mas podemos ir ainda mais longe na análise e observar que 36% de todas as escolhas foram publicadas na segunda metade do século XX.

Precisamente o mesmo período em que todos os jurados se elevaram como figuras de destaque no panorama nacional.

Encontramos ainda, na lista final, uma preocupante discrepância entre livros escritos por homens (94%) e livros escritos por mulheres (6%), o que poderá, sem dúvida, ser explicado pela menor quantidade de obras publicadas por mulheres, ao longo da História, mas talvez também pelo facto de haver apenas três mulheres entre os 12 especialistas por quem teve a responsabilidade da seleção destes livros.

Não pretendo com isto desvalorizar esta eleição ou o esforço de quem nela trabalhou, porque sei que não foi fácil. Aliás, quando a deu a conhecer na versão impressa do jornal, João Céu e Silva escreveu algo nesse sentido:

A escolha de 50 obras essenciais da literatura portuguesa não é tarefa fácil, principalmente tendo em conta o peso da questão do gosto pessoal ou emotivo perante um livro, bem como devido ao desequilíbrio que a contemporaneidade provoca numa avaliação que se pretende imparcial.

O mesmo jornalista chega a revelar algumas dificuldades concretas sentidas durante o processo de seleção:

Durante a elaboração destes essenciais, sentiu-se bastante o peso dos lóbis feitos em torno de um autor em detrimento de outro. Até se ouviram confidências do género “se este entra, aquele também deve constar”.

A ausência de mais de um livro do mesmo autor e as restrições aplicadas ao número de obras a apresentar por género também ajudam a “nublar” a objetividade da seleção.

Por tudo isto, João Céu e Silva conclui que “o resultado desta lista não é, nem pretende ser, definitivo”.

A pergunta que me ocorre: então porquê fazer uma lista?

Uma possível resposta está numa outra lista do género, publicada também em 2016 pela revista Estante da FNAC. E sobre essa até tenho experiência em primeira mão, visto que a ajudei a desenvolver.

Os 12 livros mais importantes da literatura portuguesa (segundo a FNAC)

Para a edição 11 da revista Estante, publicada no outono de 2016, decidimos convidar cinco personalidades de referência no panorama literário nacional para elegerem os 10 melhores livros portugueses dos últimos 100 anos.

Juntámos, para esse efeito, Carlos Reis, Clara Ferreira Alves, Isabel Lucas, Manuel Alberto Valente e Pedro Mexia ao redor de uma mesa, nas instalações da FNAC, e deixámo-los discutir os livros que deviam constar da seleção.

Acabámos por chegar não a 10, mas a 12 livros, que partilho abaixo:

  • Húmus (Raul Brandão)
  • Mau Tempo no Canal (Vitorino Nemésio)
  • A Sibila (Agustina Bessa-Luís)
  • A Casa Grande de Romarigães (Aquilino Ribeiro)
  • Passos em Volta (Herberto Helder)
  • O Delfim (José Cardoso Pires)
  • Finisterra (Carlos de Oliveira)
  • Os Cus de Judas (António Lobo Antunes)
  • Sinais de Fogo (Jorge de Sena)
  • Livro do Desassossego (Fernando Pessoa)
  • Para Sempre (Vergílio Ferreira)
  • O Ano da Morte de Ricardo Reis (José Saramago)

Breve análise à seleção da FNAC

Ao contrário do Diário de Notícias, a FNAC é uma entidade comercial que tem a venda de livros como um dos seus principais pilares, pelo que o propósito de uma iniciativa deste género parece claro: vender livros.

Posso, contudo, garantir que não nos foram impostas quaisquer restrições de cariz comercial ao longo de todo o processo. Estabelecemos unicamente duas condições: contemplar somente obras de ficção narrativa e concentrar as datas de edição original das mesmas entre 1 de janeiro de 1916 e 1 de janeiro de 2016.

Fora isso, foi uma eleição completamente livre.

Ainda assim, a lista final apresenta algumas discrepâncias dignas de nota:

  • Apenas dois dos livros indicados (Húmus e Mau Tempo no Canal) foram publicados na primeira metade do século XX. Todos os outros estão concentrados num período de apenas 30 anos, entre 1954 e 1984. O que, por sua vez, significa que não foi eleito nenhum livro publicado nos últimos 32 anos permitidos.
  • A seleção inclui apenas um livro escrito por uma mulher: A Sibila, de Agustina Bessa-Luís. O que, ainda assim, representa uma proporção feminina mais elevada (8,3%) do que a da seleção do Diário de Notícias (6%).
  • Embora não houvesse nenhuma restrição relativa à repetição de autores, os jurados contiveram-se por eles próprios de o fazer e distribuíram as suas escolhas por 12 escritores distintos.
  • Sete dos 12 livros escolhidos também fazem parte da seleção do Diário de Notícias. São eles: Húmus, Mau Tempo no Canal, A Sibila, A Casa Grande de Romarigães, O Delfim, Sinais de Fogo e Livro do Desassossego.
  • Todos os escritores representados na seleção organizada pela FNAC também estão presentes na seleção do Diário de Notícias. Apenas foram escolhidas diferentes obras de Herberto Helder, Carlos de Oliveira, António Lobo Antunes, Vergílio Ferreira e José Saramago.
  • À data de apresentação por parte da FNAC, apenas dois dos escritores escolhidos estavam vivos: António Lobo Antunes e Agustina Bessa-Luís.

Quais são, afinal, os livros mais importantes da literatura portuguesa?

Devemos considerar apenas a lista do Diário de Notícias, por ser mais abrangente em tempo e quantidade? Devemos focar-nos nos sete livros nos quais as duas seleções se encontram? Talvez procurar novas listagens e eleições, organizadas por diferentes entidades? Ou será que devemos desvalorizar todas estas iniciativas e focar-nos unicamente nas nossas próprias preferências?

No meu entender, a resposta é outra.

Ler é uma experiência profundamente pessoal e subjetiva, razão pela qual torço sempre um pouco o nariz quando ouço alguém a falar da “inegável” qualidade literária de uma determinada obra. A própria distinção entre o que é “literatura” e o que não é deixa-me com alguma urticária, confesso.

Temos o irritante impulso de criar rótulos onde eles não são necessários e a considerar experiências subjetivas como objetivas quando, no fundo, o que importa não é tanto o que se lê, mas se se lê.

É por isso que concordo com o jornalista João Céu e Silva quando ele escreve que estas listas não são nem devem ser entendidas como definitivas. A sua razão de ser é outra: a promoção da leitura.

Iniciativas como estas têm o condão de trazer para a linha da frente certos livros, muitos dos quais esquecidos, e estimular a curiosidade de uma nova geração de leitores em relação a eles. São um início de conversa.

Não devemos encarar os livros nelas indicados como os melhores de sempre. É impossível estabelecer, de forma objetiva, os melhores livros ou os mais importantes ou os mais essenciais. Não é, todavia, impossível estabelecer os livros preferidos de um painel de jurados num determinado momento.

Por isso, façam-se mais listas. Com mais regularidade. E recorra-se a jurados das mais diversas idades, géneros, etnias e contextos socioculturais, porque os resultados serão, naturalmente, muito diferentes e vai ser interessante analisar isso.

Lembro-me de que, uma vez, quando eu desenvolvia uma lista destas, uma autora portuguesa bastante famosa recusou-se a participar na eleição a menos que fosse incluído um livro dela. Esta não é a mentalidade certa. Precisamos de jurados menos tendenciosos para chegarmos, todos, ao final com melhores recomendações.

No fim do dia, o que importa é que mais pessoas leiam. Que descubram autores novos (e velhos). Que fiquem a conhecer um pouco melhor a literatura do seu próprio país. É para isso que listas como estas devem servir.

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