A Quinta dos Animais: uma distopia de George Orwell para combater a propaganda

Retrocedemos à primeira metade do século XX para perceber como George Orwell escreveu um dos seus mais famosos clássicos, o provocador A Quinta dos Animais.
A destruição do mito soviético
Entre 1936 e 1939, todos os olhos do mundo estavam postos sobre a violenta guerra civil que eclodira em Espanha. Preocupadas com as potenciais consequências que o confronto entre as forças de esquerda e os insurgentes de direita poderiam ter sobre o resto da Europa, muitas pessoas de outras partes do mundo decidiram voluntariar-se para ajudar no esforço de guerra.
Um destes voluntários chamava-se Eric Arthur Blair, mas hoje conhecemo-lo melhor pelo pseudónimo literário de George Orwell.
Orwell partiu para Espanha em dezembro de 1936 para se juntar a um movimento de marxistas, procurando evitar que as forças nacionalistas apoiadas pelas principais ditaduras fascistas da Europa conquistassem o poder no país. No entanto, poucos meses depois, foi alvejado por um sniper em cheio na garganta e ficou fora de ação.
Pior ainda: enquanto aguardava que se resolvessem alguns problemas com o seu passaporte para poder regressar à sua Inglaterra, as tropas comunistas suportadas pela União Soviética subiram temporariamente ao poder e, para sua surpresa, ordenaram a perseguição e repressão de milícias como aquela a que Orwell pertencia.
Foi a muito custo que George Orwell conseguiu escapar do país. Uma boa parte dos seus companheiros de milícia não tiveram tanta sorte. Foram presos e executados, sob acusações de conspirações fascistas que Orwell sabia falsas.
“Experimentar tudo aquilo foi uma valiosa lição”, disse mais tarde. “Ensinou-me quão facilmente pode a propaganda totalitária controlar a opinião de pessoas inteligentes, mesmo em países democráticos.”
Empenhou-se, a partir dessa altura, em denunciar ao mundo a hipocrisia do regime soviético, que acreditava esconder uma cruel ditadura por trás de aparentes ideias socialistas. Perseguia, nas suas próprias palavras, “a destruição do mito soviético” e, como não podia deixar de ser, escolhia a literatura como arma de eleição.
A Quinta dos Animais
A ideia surge-lhe quando, um dia, se depara com um jovem a conduzir uma carroça e a chicotear o cavalo que a levava sempre que este tentava mudar de direção.
“Ocorreu-me que, se animais como aquele tivessem consciência da sua força, nós nunca poderíamos ter qualquer domínio sobre eles, e que os homens exploram os animais praticamente do mesmo modo que os ricos exploram o proletariado.”
Foi quanto bastou para começar a planear a sátira que viria a intitular de A Quinta dos Animais — e que, em Portugal, também recebeu os nomes de O Triunfo dos Porcos e Rebelião na Quinta.

A história acompanha a revolução de um grupo de animais, liderados por porcos, contra os cruéis humanos que os exploram. Tomando à força a quinta a que pertencem, estabelecem o Animalismo, um conjunto de princípios que todos devem respeitar e obedecer, composto por sete mandamentos (originais):
- Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo
- Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas ou tenha asas é amigo
- Nenhum animal usará roupas
- Nenhum animal dormirá em camas
- Nenhum animal beberá álcool
- Nenhum animal matará outro animal
- Todos os animais são iguais
Acontece que os porcos se deixam seduzir de tal modo pelo poder que passam a ver todos os outros como subalternos, adotando cada vez mais vícios dos humanos que expulsaram do poder, embora sob um discurso constante de união e camaradagem.
Terá, realmente, valido a pena a revolução para todos os outros animais?
Mudança de mestres
George Orwell terminou de escrever A Quinta dos Animais em fevereiro de 1944, mas encontrou grandes dificuldades para o publicar.
Decorria, na altura, a Segunda Guerra Mundial e tanto a Grã-Bretanha como os Estados Unidos valorizavam (muito) a aliança com a União Soviética. Nenhuma editora destes países se atrevia, por isso, a publicar um livro tão claramente crítico do regime político chefiado por Estaline.
Sucederam-se as cartas de rejeição, algumas das quais acompanhadas por ameaças.
“O aspeto mais sinistro da censura literária na Inglaterra é que é amplamente voluntária”, escreveu George Orwell num prefácio sobre a penosa experiência. “As coisas são mantidas fora da imprensa não porque o governo intervém, mas graças a um acordo generalizado de que é melhor não mencionar um determinado facto.”
Apesar da insistência do autor, A Quinta dos Animais só ganhou uma editora em agosto de 1945, quando a relação entre o Ocidente e a União Soviética começou a azedar. Por outro lado, foi precisamente o início da Guerra Fria que transformou o livro num sucesso imediato, abrindo caminho para o lançamento de outras distopias.
Não obstante, George Orwell recusou até ao fim ver o seu trabalho transformado em propaganda antissoviética:
“É claro que a minha intenção foi, em primeiro lugar, satirizar a revolução russa, mas quis que tivesse também uma aplicação mais abrangente, na medida em que me parece que aquele tipo de revolução, uma conspiração violenta liderada por pessoas famintas por poder, apenas pode conduzir a uma mudança de mestres.”

A Quinta dos Animais
George Orwell
Em 2021, com a entrada das obras de George Orwell no domínio público, chegaram ao mercado várias edições de A Quinta dos Animais, entre as quais esta versão da Penguin Clássicos.