Como começar a escrever uma história

Alguns escritores gostam de pensar numa premissa intrigante. Outros preferem partir do protagonista. No entanto, na minha opinião, a estratégia mais eficaz para começar a escrever uma história é definir o seu propósito.
E isto é verdade quer queiramos escrever um romance, um conto ou um guião.
Afinal, se vamos investir tanto do nosso tempo na escrita de alguma coisa, devemos ter um objetivo específico para ela. Não pode ser apenas por vaidade, obrigatoriedade ou um desejo delirante de nos tornarmos ricos e famosos. Certo?
Escritores deste mundo, mentalizem-se de uma coisa: os leitores não querem saber de vocês. Não se importam com as vossas pretensões pessoais nem com o que vos motiva. Importam-se, isso sim, com as histórias que contam. Com o que sentem e aprendem com elas.
Por isso, sim, todas as histórias que escreves devem ter um objetivo. Uma razão de ser. E é por aí que deves começar: porque queres escrever?
1. Identifica o principal objetivo da história
Pode não ser imediatamente óbvio, mas existe uma razão — espero! — para que a ideia que te surgiu não te saia da cabeça. Há alguma coisa sobre a qual queres falar. Algo importante que queres comunicar ao mundo.
Se mergulhares profundo o suficiente, vais ver que o bichinho da escrita não apareceu por acaso. E ainda bem que é assim.

Ao escrever A Quinta dos Animais, George Orwell terá procurado transmitir aos leitores os perigos do totalitarismo, alertando que é preciso ver além da propaganda e das palavras idealistas para reconhecer quem se serve do poder com o intuito de explorar os mais vulneráveis.

Por sua vez, ao escrever A Laranja Mecânica, Anthony Burgess mostrou-nos que interferir com o livre-arbítrio humano, mesmo que por uma aparente boa causa, é arriscar perder aquilo que nos torna humanos.
São estas mensagens que conferem substância (e intemporalidade) a estas histórias. E o mais interessante é que, como estão tão bem integradas nos respetivos enredos, não lhes conferem um tom moralista ou condescendente. Não se sobrepõem à história.
Mas atenção: “mensagem” não é o mesmo que “tema”.
O tema de uma história é algo que se vai descobrindo pelo caminho, ou seja, à medida que a escreves. Tipicamente, pode ser resumido a uma ou duas palavras. Por exemplo, pode alegar-se que A Quinta dos Animais é sobre poder e que A Laranja Mecânica é sobre liberdade.
A mensagem, por sua vez, é uma “verdade” que a história se propõe a partilhar em relação ao mundo. A razão pela qual tudo acontece. A razão por que escreves.
Pensa bem: o que queres que os leitores retirem da tua história?
Qual é a tua mensagem?
2. Transforma a mensagem numa lição
Esta é a parte mais engenhosa desta estratégia: depois de encontrares a mensagem da tua história, inverte-a e assume esse estado como o ponto de partida para a narrativa.
Por exemplo, eis três possíveis “verdades”:
- Ser-se humano é mais uma questão de empatia do que de biologia.
- Dedicar a vida a prazeres supérfluos resulta, a longo prazo, numa existência vazia.
- A batina, por si só, não confere superioridade ética ou moral.
Se invertermos cada uma destas mensagens, chegamos a três possíveis “mentiras”:
- Existirão sempre processos para distinguir humanos de não-humanos.
- O hedonismo é um estilo de vida sustentável.
- Podemos confiar na responsabilidade moral dos padres.
São precisamente estas três “mentiras” que servem de ponto de partida a três grandes clássicos da literatura.

Em Será que os Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (Philip K. Dick), o protagonista Rick Deckard é um caçador de recompensas que persegue um grupo de androides desertores. A história decorre num futuro onde a tecnologia evoluiu ao ponto de tornar os androides indistinguíveis dos humanos, mas Rick acredita que conhece um processo infalível para os reconhecer, porque os humanos possuem características que não podem ser replicadas.

Em O Retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde), o protagonista adota um estilo de vida profundamente individualista, devotando-se aos mais diversos prazeres sem se importar com quem magoa no processo. A sua intenção é permanecer jovem para sempre, recorrendo para isso a um retrato que envelhece no seu lugar, exibindo todas as marcas da sua decadência.

Em O Crime do Padre Amaro (Eça de Queiroz), um pároco recém-chegado a Leiria apaixona-se pela filha da dona da pensão onde fica hospedado. Sabe que o envolvimento entre ambos é proibido, mas convence-se de que não existe qualquer contradição entre os seus votos religiosos e o instinto sexual — desde que consiga manter o caso em segredo.
Cada uma destas narrativas evolui de modo a que os personagens e/ou o leitor descubram a mentira da premissa e, consequentemente, a verdade da história.
3. Cria uma oportunidade para a evolução
Agora que tens um ponto A (a mentira em que o teu personagem acredita) e um ponto B (a verdade que deverá ser revelada), só precisas de encontrar uma maneira lógica de os unir. Uma oportunidade para a evolução.
É para isso que servem as estruturas narrativas.
A não ser que queiras contar a história mais aborrecida de sempre (leia-se: sem conflito), o teu protagonista será inevitavelmente confrontado com obstáculos, aos quais responderá tendo por base a mentira em que acredita.
Enquanto os problemas forem menores, pode ser que até se vá conseguindo livrar deles sem grande aflição. Chegará, contudo, uma altura — tipicamente no final do segundo ato, mesmo antes de entrarmos no clímax — em que o obstáculo será tão grande que ele não terá outra opção que não a de rever todo o seu entendimento do mundo.
Descobrirá, então, a verdade da qual se tem, teimosamente, mantido afastado.
O que o teu protagonista fará com essa informação é com ele. Alguns mudam e outros mantêm-se firmes nas suas convicções. Alguns tornam-se capazes de superar os problemas que tanto os afetam e outros não.
No entanto, é importante que haja sempre uma oportunidade para a mudança, quer esta seja aproveitada ou não. Caso contrário, a história parecerá desprovida de sentido.
Como começar a escrever uma história
A estratégia que descrevo acima não é, naturalmente, a única aceitável para começar a escrever uma história, mas é uma forma bastante fácil e eficaz de garantir que esta terá um propósito.
Por isso, e em especial para todos aqueles que estão agora a dar os primeiros passos na escrita de ficção, a minha recomendação é que, antes de se concentrarem na criação de personagens, lugares ou adereços, procurem dar resposta a estas três simples questões:
- Que mensagem quero transmitir com a minha história?
- Como posso inverter essa mensagem de modo a torná-la a crença inicial de pelo menos um personagem?
- Que obstáculos posso colocar no caminho desse personagem para o obrigar a descobrir a verdade?
Quando tiveres resposta para tudo isto, vais dar por ti com o esqueleto da tua história. Depois, é “só” preencher os espaços. E escrever.
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